segunda-feira, 8 de novembro de 2010

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Encontraram-se como o combinado. Às onze da noite, a lua cheia subindo no horizonte, imensa e gorda, a árvore fazendo sombra dentro das sombras, o banco de sempre. Se alguém dissesse que era um clichê realizado, os dois estariam completamente de acordo: conheceram-se ali, namoraram ali, trocaram juras de amor eterno ali, entregaram-se a desejos íntimos e apressados, ali. E ele a pedira em casamento nesse mesmo local, ali...
Chegaram, desta vez, de lados opostos da praça. Ela vinda da antiga casa onde partilharam a vida, realizaram os sonhos possíveis e sofreram pelos impossíveis. Ele, subindo a passos largos pela alameda central, vinha de sua nova casa, além dos muros do cemitério da cidade.
Ela sentou-se, as lágrimas escorrendo pelas gretas formadas pelas rugas que os anos lhe presentearam. Ele, de pé a seu lado, tinha a mesma aparência dos anos dourados, quando ficara famoso pelo pé-de-valsa que encantava as moças pelos salões de baile.
"E aqui estamos, amada minha..." -- pensou ele, dentro da mente dela.
"Viestes me buscar, meu amado?" -- respondeu ela, com todas as saudades expostas em seu rosto antes tão bonito.
"Não, não vim. Estou aqui por vontade e pelo combinado que uma dia acertamos. Vim lhe dar prova de que persisto e te espero."
Escondeu o rosto desapontado com um de seus lencinhos bordados. Queria ir com ele e viver a eternidade a seu lado, como tantas vezes planejaram. Ou melhor, ela havia planejado, já que ele, completamente descrente das magias da vida, só prometeu que compareceria a esse encontro porque ela se zangara com sua pouca fé. E aqui estavam, quase podendo se tocar e ao mesmo tempo tão distantes.
"Julia, minha vida e minha querida, precisas entender que existem regras que não posso quebrar, mesmo por ti."
Desde que ele se fora, ela pensara várias vezes em tirar sua própria vida. Não o fizera por saber dessas regras, por vezes tão... Desumanas! Ele se fora há quase quinze anos e para ela pareciam quinze minutos infinitos de dor.
"Julia, minha amada, precisas voltar agora."
"Não quero!" -- disse ela, com a raiva despontando nos belos olhos violetas, hoje embaçados pela idade -- "Vou ficando aqui, onde ao menos ainda posso sentir tua presença".
"Não podes, Julia.." -- ele tentou tocar-lhe a face, mas seus dedos a atravessaram como fumaça -- "Tens que voltar. As regras, tu as conheces. Os médicos estão te chamando e enquanto tiveres o sopro da vida em teu corpo, precisas viver. Por mim!"
Sim, ela sabia que a estavam chamando. Sentia os socos em seu peito e o calor dos medicamentos a envolvendo. Súbito partiu, com a dor do choque que lhe aplicaram ao peito.
Julia viveu ainda o suficiente para ver a neta grávida. Quando nasceu o menino, puseram-no o nome de Raul, em homenagem ao avô falecido a tantos anos. E Julia teve a certeza de que não se encontrariam mais, como o combinado.
As regras, sempre elas...

1 comentários:

Cristiano Melo disse...

David,
Neste conto, consolidas mais ainda o seu estilo, se é que se existe UM estilo, literário. Particularmente, do meu agrado, sua narrativa intrigante, deixa sempre um suspense no ar e o desfecho vem, costumeiramente de uma maneira fantástica, a la Montpassant e Allan Poe. Curiosamente neste conto, me remeteu a um conto que gosto muito: "Noites Brancas" de Dostoiévski, se não o leu ainda, dá uma lida, você vai ficar impressionado com algumas semelhanças.
Este é um dos baratos da literatura, uma espécie de (in)consciente coletivo dos "malucos" que caminham pelas letras.
Parabéns e agradeço por mais uma boa leitura!

Abraços

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