sábado, 21 de agosto de 2010

postheadericon Bar do Zico

O Bar do Zico fica exatamente na esquina formada pelas ruas da prefeitura e do comércio. Ou seja, um ponto previlegiado que passa de pai para filho desde o avô do atual proprietário.

Bar sujo, esse do Zico. O mobiliário herdado dos tempos da fundação hoje se encontram colados ao chão com cuspe. Entre pés de banquetas de balcão ou debaixo da mesa de bilhar, um arqueólogo citadino poderia descobrir raridades, tamanha quantidade de sujeiras ali depositadas pelos frequentadores.

Nas prateleiras, bebidas empoeiradas, curiosidades colecionadas pelas três gerações (até a bala "perdida" que deu cabo de um tio do pai do atual Zico encontra ali seu espaço), retratos de várias equipes do time do coração.

As mesinhas, dispostas em torno da tal mesa de bilhar cujo pano verde rasgado cria irregularidades sempre motivo de reclamação entre possíveis jogadores, comum a tantos bares, são sem graça e tão encardidas quanto o chão. Em vários pontos, a fórmica descascada vira abrigo a recados das putas que frequentam o lugar de madrugada ("ligue pra mim!").

Como descrito, poderia lhe causar uma sensação ruim ao menos olhar para um antro desses. Mas a realidade não é assim. O Bar do Zico é querido por seus frequentadores. Muitos deles conheceram o Bar ainda novo, com seu balcão lustroso repleto de iguarias -- que iam de ovo colorido a tremosso, passando pelos picles e pela conserva de salsicha.

O Seu Tomé é desses frequentadores. Há 30 anos, tão obrigatória quanto a missa de domingo é a cerveja no Zico.
Sentado a um canto, próximo ao imundo banheiro, baixava o boné de lã sobre os olhos e lá se deixava ficar por horas. A cerveja, trocada de hora em hora -- "Se não estiver gelada é a mesma coisa que beber mijo", era apreciada em pequenos goles. Quem o via pensava que ali estivesse dormindo, mas vez por outra dava um pitaco sobre o assunto corrente, bebia mais um gole de cerveja e tornava-se imóvel por mais longo tempo.

Ontem foi um dia normal para todos. Entramos no Zico depois das cinco da tarde, para tirar da garganta o gosto do trabalho do dia. Uma partidinha de sinuca, para aliviar os nervos. Nas bocas o jogo de ontem a noite, onde meu tiome tomou quatro gols e foi eliminado.
Seu Tomé participou da conversa mais do que o normal. Elogiou o ataque que desmontou minha zaga. Disse-me para ser homem e trocar de time. Teve a pachorra de cantar vitória. Mandei-o sonoramente a merda.

Pela primeira vez o vi de pé: baixinho, quase corcunda, com um terno que deveria ser de seu casamento. Veio até a mesa, apanhou meu taco, matou todas as bolas e voltou para sua cadeira. De lá, disse: "Tenho muito ainda para ensinar, mas pouco tempo. Sei mais que vocês todos juntos. De bilhar e de futebol. De mulheres para casar e de mulheres para pagar". Mandou trocarem a cerveja por outra mais gelada, baixou o boné sobre os olhos e nos esqueceu.

Pela manhã, indo para o serviço, passei como passo todos os dias pela frente do Zico. "Fechado por luto" dizia a placa escrita a mão na porta fechada.

Segundo vim a saber depois, quando foram fechar o bar lá pelas 2 da manhã, se deram conta que o Seu Tomé ainda estava lá. O boné sobre os olhos, a cerveja quente. "Dormiu",pensaram. A um toque, seu corpo sem vida caiu de lado, indo ao chão. Morreu dormindo, a cerveja gelada, o corpo gelado.

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Originalmente publicado em "Uns & Outros" -- 2009 -- ISBN: 978-85-60864-23-2

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