sábado, 18 de dezembro de 2010

postheadericon UTI

Se me encontro aqui hoje, é por persistência. Minha vontade de viver é maior que essa profusão de tubos que me mantém vivo.

Há exatos 6 anos, sofri um gravíssimo acidente, enquanto me encaminhava para o trabalho. Estava chovendo e eu, em minha imprudência valente dos motoristas com algum tempo de habilitação, dirigia a toda velocidade, desviando de poças e buracos de minha cidade. Não estava atrasado nem nada, mas dirigir de maneira agressiva tornou-se um hábito, independente do compromisso ou do leito pelo qual trafegasse.

Sabe quando você usa óculos e não nota a sujeira se acumulando nas lentes? Parece que o mundo vai perdendo a cor pouco a pouco, chega a pensar que necessita de uma nova consulta com seu oftalmologista, quando na verdade basta uma boa lavada em seus óculos para que tudo retorne a normalidade. Aconteceu algo parecido na hora do acidente: embaçou o vidro, eu me esforçava para enxergar, não vi o caminhão parado na esquina que entrei derrapando pelo excesso de velocidade e deu no que deu. Até hoje, passados tantos anos, me lembro dos números da licença, mal-escritas em vermelho contra o fundo verde da carroceria de madeira.

Quando acordei estava saindo de uma cirurgia, onde repararam um pulmão perfurado, extraíram meu baço, costuraram alguns pontos em meus intestinos e remendaram alguns tantos ossos partidos, principalmente em meu rosto, braços e pernas. Pela dor que sentia não poderia precisar em quantos lugares eu sofrera algum tipo de injúria. Apaguei de novo e só acordei meses depois...

Minha primeira recordação aqui da UTI foi a de um enfermeiro me virando para trocar os lençóis. Não sei se vocês sabem, mas os colchões que se usam nos hospitais são revestidos com uma capa plástica, o que faz com que nós, enfermos, transpiremos como uma bica sobre o lençol. É desconfortável mas limpo. Ao menos trocam as roupas de cama uma vez ao dia.

Minha esposa e meus filhos têm vindo me visitar, ela mais que eles. No começo tinham que barrar minhas visitas, mas com o tempo foram rareando, sobrando apenas a presença diária de minha esposa. Muitos já me condenaram. Estou morto para o mundo e esqueceram de me enterrar. Ouvi isso da boca de um de meus melhores “amigos”, em sua última visita.

É interessante quando pensam que você não ouve o que dizem. Quase uma sensação vouyerística, se me permitem o termo. Dizem uns aos outros coisas que jamais diriam na minha frente. Como quando um meu conhecido, cliente de longa data, aproveitou o sofrer de minha esposa e, colocando-lhe a mão sobre o ombro, quis consolá-la de uma maneira não muito galante. Dois sonoros tapas dados por ela foram o suficiente para que ele se afastasse, não antes de jurar que ela ainda seria sua. Que ainda ela o procuraria. Esse também nunca mais apareceu.

Ao lado de minha cama existe outra cama e enfileiradas até o outro lado da imensa sala que é esta UTI, outras mais. Quando me viram de uma lado para o outro para que meu corpo não fique em feridas pelo contato do maldito colchão eu consigo vê-las, iguais em sua forma, diferentes em seus conteúdos. Meu divertimento consiste hoje em descobrir quem seriam essas pessoas, assim como eu enfileirados a espera de suas mortes.

Na cama mais próxima de mim, à minha esquerda, um paciente asiático, já idoso, teve um derrame. AVC – Acidente Vascular Cerebral. E H, de Hemorrágico. Sinto que se um dia conseguir sair daqui posso clinicar como médico por aí, pois tenho aprendido muito nesta minha universidade forçada. Esse paciente, meu vizinho, deve ter lá seus 65 anos, pouco mais, pouco menos. Seus visitantes são sempre engravatados, aparentados a ele de alguma maneira. Senhora chorosa não há, pelo que suponho seja ele viúvo. Logo mais torno a lhes contar algo que sei deste meu vizinho.

Pelo que consigo ver de onde me encontro, deitado sobre meu lado esquerdo, com o respirador também a minha esquerda, enriquecendo meu sangue com ar puro, existem ao todo mais oito pacientes.
Numerando-os de 1 a 9, sendo eu o nono, a primeira cama e o ocupante do quinto leito sofrem de uma tal SARA. Não sei o que significaria isso, mas coisa boa não é, já que vi outros pacientes anteriores com esse mal morrerem em questão de dias.

Ocupando a segunda posição de nosso hit-parade, temos um infartado que acabaram de operar e colocar um marca-passo. Coisa sem graça que nem vale o sacrifício dos comentários.
No terceiro leito, sempre “de lá para cá”, um outro acidentado. Esse teve menos sorte que eu. Perdeu duas pernas.

O número 4 é interessante e não o perco de vista; é um assaltante perigoso, mas que tem convênio médico, baleado em uma perseguição policial. Eu fiz das tripas coração para poder pagar meu convênio, caríssimo. Esse sem-vergonha, bandido, tem o mesmo convênio que o meu. Garanto que aquele meu carro roubado há alguns anos financiou também o convênio de algum desses safados. Coisas da vida. Fico rezando para que algum dia seus comparsas invadam a UTI para tentar resgatá-lo. Ao menos um pouco de emoção em minha vida...

Número 6. Uma mulher. Teve, segundo um dos médicos comentou com outro, pré-eclampsia. Algo sobre a pressão subir demais na hora do parto ou algo assim. Coitada...nem vai conhecer o filho. Está já sem sinais cerebrais e vão desligar seus aparelhos logo, logo.

Apresentados meus colegas, me permitam retornar a meu colega aqui ao lado, que apesar de inconsciente não precisa dessa parafernália toda que tenho para mim para poder viver. O bom velhinho, pelo que entendi, não tem nada de bom. Mafioso, segundo ouvi comentarem. Trazia contrabando da China e revendia aos R$ 1,99 por aí. Coisa que, se entendi direito, além de acabar com os comércios locais ainda fazia com que estes transformassem suas lojas em pontos de venda de seus produtos piratas. O comércio em si era uma grande fachada que encobria, entre outras coisas, tráfico de escravos, jóias e drogas. Ou seja, o perfeito capitalista selvagem.

Corre a boca pequena, entre murmúrios que escuto da boca da enfermagem, que sua doença não tinha nada a ver com o verdadeiro motivo dele estar ali. Dizem eles que alguém da família havia tentado envenená-lo e o filho mais velho estava pagando para manter o pai naquele local, pois temia que se o levasse para casa, tentando fazer com que ali se restabelecesse, tentassem mais uma vez matá-lo. Se pedirem minha opinião, de quem, está a anos presenciando de tudo que por aqui acontece, diria que quem quer dar cabo do velho é o sobrinho com cabelo tingido.

Poucos antes deste texto ser escrito, monges budistas vieram orar pelo semi-defunto, tentando encaminhar sua alma de volta para seu corpo. Ou não, sabe-se lá se o chinês loiro não está metido nisso, querendo de vez despachar a alma do tio.

Começaram com um cântico lento, uma campainha soando ao fundo. Querendo ou não, você acaba fixado nos sons por ele emitidos. A cantilena vai ficando cada vez mais rápida, como se uma onda estivesse se formando nas profundezas do oceano. Cada vez mais os sons, embora não passem de murmúrios quase inaudíveis, vão se tornando uma espécie de zumbido grosso, como um zangão.. Não sei lhes explicar...seria como se você pudesse “apalpar”, “tocar” , na realidade um “sentir-se tocado” pelos sons.

Não sei mais nada quanto ao velho ali ao lado, mas em mim o ritual teve seu efeito. O que dizem de uma tal luz brilhando no final do túnel é quase que uma verdade total. Quando dei por mim estava de pé, olhando para meu corpo morto, embalado por uma música suave e, acreditem, banhado pelo sol da manhã, que jorrava sobre mim vinda diretamente de algum lugar sobre minha cabeça. Nada mudou, mas ao mesmo tempo me sinto livre. Se alguém conseguir psicografar isto, por favor, avise minha mulher do seguro que está em meu cofre. Despeçam-se de meus filhos. E diga àquele safado que cantou minha mulher ao lado de meu leito, que quando ele sentir um arrepio na espinha, sou eu ali, cuidando para que ele sinta medo pelo resto da vida.
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Originalmente publicado em "Uns & Outros" -- 2009 -- ISBN: 978-85-60864-23-2
terça-feira, 14 de dezembro de 2010

postheadericon Releitura

Reli teus verso.
Mais que reler, revivi.
Paredes vermelhas perdidas em outras vidas
Acanhamentos mentirosos, beijos roubados.
Saudades desmedidas
Ansiedades incontidas.


Senti teus versos, mais uma vez.
Onde a memória falha,
Linhas grossas me apontam os sinais
De tuas vontades
Necessidades
e tantas coisas mais.


Nos encontramos, nos amamos.
Destino ou sina,
busca ou casualidade.
Adjetivos desimportantes,
pequenos nesse grande mar
de amor constante.


"Era uma noite sem estrelas"
Mas teu brilho perfeito,
diamante sem jaça,
Sol de chuva, limpo e perfeito,
cegante, revigorante,
Atravessou meus olhos, minha mente
(eu sei, inconsequente)
Se fez presente. Sente?


Mais uma vez os versos teus.
Que hoje assumo como também meus.
Por sermos hoje um,
Colados,
Cimentados,
Pelo calor dos olhos teus.
domingo, 12 de dezembro de 2010


Vivemos
nós todos uma das mais difíceis épocas da humanidade. Não existem mais
segredos, não existem mais distâncias intransponíveis (a não ser, claro, que
seu destino seja Marte), não existem meias-palavras e nem mesmo meia-sola
(impressionante que os mais novos não entendam gírias como meia-sola, com seu
pequeno conhecimento meia-boca).


Todo e
qualquer comentário transforma-se, necessariamente, em boato. A internet veio
para ficar e alterar padrões insuspeitos de antigamente, porém criou novos
vícios e malcriações.  Fast-food,
fast-livro, fast-entendimento, fast-pouca-vontade, fast-compreensão,
fast-tesão
...

Não, não é saudosismo. É descrédito, acho eu. Apreensão, talvez. Não há mais
como se fiar a uma conversa, pois não existe o registro na internet e depois,
se você quiser conferir se teu interlocutor disse a verdade, não há como buscar
no Google. Viraremos emoticons? Os maus serão vírus, os bons anti-spyware, o
governo um enorme HD, a escola um 486 com impressora Amélia, a família uma comunidade
do Orkut?


O valor
dado aos relacionamentos virtuais é desproporcional ao bate-papo de mesa de
bar. "Oi tuitosfera, estou no bar tal com vários arrobas
interessantes". Prefiro desligar o computador e tomar meu uísque, comer
amendoim salgado (sem casca), escutar um músico cover ruim, ter que chamar um
táxi, tomar a última no posto de gasolina, pagar uma para o taxista que acaba
virando o amigo que deixa o celular ligado nas horas que você precisa. Por
falar nisso, o garçom (ou garçonete) amigo também é o que há. Não chora nas
doses: debulha-se em lágrimas de puro malte. O dono do bar não liga porque sabe
que sempre existe o retorno e, quando se nota, senta na tua mesa para reclamar
da vida que ele não está tocando, porque toca o bar, porque tem que ficar
atento, porque o garçom se debulha em lágrimas salgadas pelo aumento que ele
não pode pagar.


E, por
mais estranho que pareça, há o amor virtual. Avatares photoshopados que mostram,
sei lá, 1/16 do corpo do(a) pretendente dá margem aos sonhos que antes o terno
e a gravata ou o vestido bem cortado permitia. "O que há por baixo de
tanto pano?", pensava-se. Mas isso é de outros tempos, do tempo em que a
Playboy exibia uma tarja preta sobre as genitálias desnudas (em tempo, desnuda
por assim dizer. Moitas de grossos cabelos cobriam qualquer traço, posto que
depiladas não eram moda). Hoje mostra-se de tudo e a todos na vida real,
protege-se no virtual. Uma inversão desproposital. Pelados nos avatares já, bom
mote de campanha. Mas cubram-se na vida real para deixar o sonho do primeiro
beijo com gosto de "Consegui!" e quero mais daqui a pouco, já.


Contra
a internet não. Contra as alterações profundas que anda causando na sociedade.
Não tem aproximado povos mas sim distanciando vizinhos, que só se conhecem se por
acaso ( bem por acaso)frequentarem o mesmo grupo do facebook.


 Bom-senso?
Não. Viver em colméia ou alcatéia, dependendo do sua tendência, mas vivendo
junto de quem caminha sobre os próprios pés.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

postheadericon Foste

O que passa entre os muros?
Tantos os mistérios, tantas histórias...
Pessoas que ali jazem eternamente,
Enquanto o eterno se faça presente,
Ecoam lamúrias pensadas
Sofridas cantigas de vidas impuras
Santos? Não os há...
Nem aqui ou acolá pois, claro
Humanos são seres rasos,
Dançando conforme sua própria músicas
E, logo ali,
Talvez roubando de outros alguns compassos
Ouve o sussurro, trazido pelo vento quente?
São hálitos, bafos,
Os dentes sujos quando existem
Se não, ocos negros, fétidos, vazios absolutos
Negritude perfeita.
Tentam te assustar, com verdades mortas
Com mentiras tortas, essas pessoas esquálidas
Sem pulso na carótida ou aorta
Passe reto, não demonstre medo
Nada podem contra ti, caro companheiro
Vês? São todos diáfanas formas
Folhas levadas pelo tempo, leves
Agora, chegamos a tua cova. Olha!
Teu norme em bronze e mármore,
Gastaram com teu funeral, te sentes bem?
Agradecem tua ausência ou choram tua perda?
Isso pouco importa, pois agora
Dentre tantos gritos absurdos
O teu somente será mais um
Sem patente, sem sangue azul.
Vai, querido. Voa. Te deixa levar.
És diáfano como eles agora,
Fumaça da última tragada.

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@David_Nobrega
Mataram a bio... Jamais morreu
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