sexta-feira, 8 de outubro de 2010

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 Antes do sol nascer e banhar com sua luz mortiça a janela envidraçada e suja, eu já estava acordado. Não deixei o despertador tocar, pois hoje não queria me levantar, trabalhar, aguentar as pessoas que me desprezam na mesma proporção que eu as desprezo. Resolvi que merecia um dia de folga e depois do sonho que me perseguiu a noite toda achei melhor mesmo nem sair da cama. Melancolia profunda, causada pelas recordações em forma de balões e doces caseiros, de pé no barro e brincadeiras que hoje são tratadas como uma deformação de caráter pelos psicólogos infantis.

Lembro de estar de volta à infância, calças curtas e joelhos esfolados de alguma queda, a sensação estranha de minha velhice dentro da pequenez de um corpo que já fora meu um dia. Como era difícil alcançar o espelho do banheiro e tentar domar os cabelos sempre em desalinho. A fantástica descoberta de um inseto a ser espetado, os amigos imaginários que viviam dentro dos bonecos e carrinhos de plástico barato com suas peças que, uma vez desencaixadas, nunca mais voltavam às suas posições originais. O café com leite com nata boiando, pão com manteiga de lata.

Acordei sobressaltado, empapado de suor, com um aperto no peito que quase me fez chorar, como não fazia desde sei lá quando. Anos de olhos secos, que não mais se maravilham com a vida chata e descolorida. Sentei na cama e enquanto acendia o cigarro memórias intensas desfilaram pela fumaça. Rostos e nomes completos, de amigos que tive em meus tempos de escola, quando pensamos que o amanhã é tão longe que só chegará depois de amanhã, talvez somente semana que vem. Onde será que foram parar os zés e marias de minha vida?

A cada novo rosto que me surgia na mente, sentimentos intensos me faziam o corpo velho que já esteve dentro de carnes macias e saudáveis tremer. Aquela menina, a Andréia, com acento, que me ensinou a desenhar passarinhos. O Diogo, parceiro de muitas artes, que uma vez fugiu de casa comigo. Fugimos para a casa dele. Na semana seguinte, ele fugiu para a minha. Morreu cedo, pelo que sei. O Robertão, gigante de nossa turma de segundo ano primário, metia medo em nossos desafetos mas chorava escondido a cada surra que o pai lhe dava. A Eliana, que gostava de brincar de coisas que nos diziam para não fazer, como aquela coisa de ficar com figa e, se pego sem a tal, era obrigado a beijar alguém à escolha do afortunado autor do flagra. Gente, gente, gente. Minhas gentes, distantes nos tempos e ausentes de mim por décadas. Por quê vocês voltaram hoje?

Estendi-me na cama novamente, acendi outro cigarro e ali fiquei por horas, fumando minha vida. Batendo cinzas de saudades incômodas no copo da mesa de cabeceira. Perdido em histórias que pertencem a tantos eus, que em certo momento ficou difícil distinguir qual fase de minha vida realmente estava acontecendo. Em um momento, as calças curtas, em outro a arrogância do jeans rasgado. Mais adiante, o desamor e a ganância, o terno de risca com camisa azul e punhos brancos.

Pessoas confortam-se com suas memórias, como a solitária viúva que espalha pela casa fotos de amor levado pela Morte ou a mãe que leva flores ao túmulo do filho. Eu simplesmente deploro minhas memórias. Me fazem mais velho e mostram o quão inútil fui em minha vida. Conseguem o que ninguém conseguiu: que eu me deteste.

Pelo meio da tarde tomei um banho e foi só com grande perseverança que atingi a altura do espelho para me barbear. Minhas pernas, acostumadas à cadeira de rodas não suportam meu peso muito bem. Ao me apoiar sobre a louça cara da pia, tudo veio abaixo e entre estilhaços de memórias que voaram para todos os cantos do piso frio, um atingiu minha garganta, por onde sangue jorra com prazer. Por aquele mínimo orifício escorre minha vida e, para ser sincero, nem fiz menção de tentar contê-lo. 

Um acidente oportuno, que fez de mim uma memória pálida em sua vida. 

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